O Diabo de Tudo

Era uma manhã do domingo. Este é o único dia de folga do Rogério. “Ah, que coisa boa! Dia de cerveja e churrasco”, pensaria o caro leitor. Mas não é esse o caso.

Talvez você seja uma das pessoas que tomou as decisões que, por ventura da vida ou, até mesmo, planejamento, hoje estão em um emprego não só satisfatório – cada um com seus critérios – mas também prazeroso de uma maneira, que mel algum têm a potência de proporcionar. Talvez com a próxima descrição deixará tudo mais claro ao leitor. Faço a seguinte proposta: imagine aquela pessoa irresistível. Pense nas pessoas aleatórias que já cruzaram seu olhar na rua e que dilataram sua pupila ao ponto de ver as estrelas com tanta nitidez que se questionaram se ainda estavam na Terra. Ou na pessoa que é sua companheira; talvez o destino já esteja ao seu lado e você tenha se encontrado, e cultivado a relação suficientemente para conquistar tal pessoa, com a famosa “prometida”. Pode ser que o leitor nunca tenha tido alguém; só digo que é melhor ter experiências ruins do que ter experiência alguma. Peço perdão, pois divago. Sabe o melhor sentimento que você já sentiu na vida? Não se preocupe, Rogério não sente isso pelo seu trabalho. Na verdade, impossível odiar mais; o capeta não permitiu tamanha ira. Aprendeu a descontar toda sua raiva de uma maneira produtiva – segundo os critérios dele – e ainda apreciar quando via as consequências de suas ações.

Rogério observa os dados da casa de Jonas, que tem uma das rotinas mais cronometradas e organizadas de todas. A presa perfeita e, com certeza, tem toda a potência para ser o ápice do divertimento durante muito tempo. Às cinco horas da manhã, a cafeteira de Jonas inicia seu perfumado processo de fazer um café com leite, sempre com a mesma temperatura: vai para o copo com noventa graus celsius e, após dez minutos na máquina, esfria-se para maravilhosos vinte e nove graus, sendo esta exatamente a hora para levantar e apreciar o café na sua temperatura ideal, segundo o proprietário. Como de costume, as torradas ficam prontas na mesma hora; só é necessário se lembrar de colocar mais pão depois. A tecnologia não chegou ao ponto de automatizar essa parte do processo. Após dez minutos bem folgados, a comida foi ingerida e a louça já está na máquina. O maior trabalho foi colocar o pão na torradeira…

Apesar do dia parecer completamente comum, como foi durante muito tempo, a casa parece mais quente que o normal, o que produz estranhamento em Jonas. Durante dois anos, isso nunca havia acontecido. Ao chegar no banheiro, identificou que a banheira já estava cheia e na temperatura de vinte e nove graus, claro. Não poderia ser outra. A pequena tela não mente. A brincadeira começa aí: “Por que essa porra de água não está na temperatura que queria?”, urra Jonas. O visor marca o horário, cinco e vinte, e a temperatura desejada, mas com certeza não é aquela a da banheira. Após umas dedadas na telinha, talvez tenha acontecido uma inesperada viagem no tempo, pois agora são seis e vinte da manhã e a temperatura de vinte seis graus. “Que desgraça é essa?”, já colocando a roupa pro trabalho. “Não é possível que até a roupa saiu da máquina diferente? Por que está fervendo?”. Para Rogério, está impossível conter as gargalhadas.

O próximo passo no cronograma é escovar os dentes. Se tivesse água da torneira, seria melhor, pois, de repente, não havia mais água na casa. Sair do banheiro também deixou de ser uma opção. A porta trancou e, com muita teimosia, não abre mais. Jonas senta naquele chão frio e chora. Nem o maldito chão aquecido está funcionando. “Já sei, vou ligar para o seguro!”, pega seu telefone e disca o número.

O telefone ao lado de Rogério toca:

– Olá, você ligou para o setor de seguro da Admai. Meu nome é Carlos. Como eu posso atendê-lo? – com o objetivo de se manter nas sombras, usa o nome de alguém na empresa que ele não gosta, em todas as ligações. “Estou no escuro de meu frio banheiro. Não há água na casa, apenas a que já está na banheira. E gelada, ainda por cima! Estão querendo me matar congelado?”, Jonas usa hipérboles com frequência.

– Senhor, preciso do seu número de cadastro e das palavras-chave para abrir sua conta no sistema.

– Eu poderia pegar o número se a porta do banheiro se abrisse e eu fosse até meu armário de cartas, mas a porta está trancada de não destranca mais.

– Senhor, então não poderei te ajudar. Só posso acessar o sistema com seu número de cadastro e as palavras-chave.

– Não há nenhuma outra maneira? Eu preciso ir pro meu trabalho; aliás, lugar que eu consigo o dinheiro para pagar o seu serviço. Vão me deixar morrer aqui, por acaso?

– O senhor precisará ligar para a polícia e, após investigarmos o relatório policial, poderemos te reembolsar o valor que está no contrato – Rogério poderia muito bem ajudar Jonas. Afinal, sua conta já está acessada. A parte boa de trabalhar diretamente com essas coisas, é que apagar o próprio rastro é muito simples; ou os supervisores na empresa não observam tão minuciosamente os relatórios. Não foi pego até agora e com certeza hoje não seria a primeira vez.

– VOCÊS VÃO PAGAR CARO POR ISS…

A bateria do celular acaba, junto com as esperanças de sair daquele lugar; esta foi mais uma das peripécias de Rogério, que desligou a tomada no meio da noite. O banheiro muda da imagem de membro íntimo da família para um a de um completo estranho. Inclusive, irritante. Como aqueles mendigos que tentam ter uma conversa antes de pedir o ouro que compra a cachaça. “Bom, vou meditar”, decide Jonas.

“Sempre penso em tudo”; o segundo passamento favorito de Rogério era se achar. Coloca a banheira para encher novamente, transbordando e dando início ao alagamento. A temperatura está perfeita agora, claro. Não é tão mau assim.

É ótimo pagar cinquentão para o pessoal da instalação colocar câmeras nas casas das pessoas. As imagens deixam tudo mais divertido. O pessoal acha que Rogério é só um pervertido; mas, pior ainda, é um sádico. Tornando-se um ser onipresente, observa o caos que instaura na vida das pessoas. Odeia trabalhar como chefe de manutenção. Estudou durante anos para ser o programador chefe da empresa; sabe que tem todo o conhecimento necessário para sê-lo, mas nunca foi escolhido nas poucas vezes que a vaga ficou aberta. Montou seu status como pessoa santa para todos, ao ponto de ter tanto acesso que o programador chefe teria inveja; um cara acima do peso e antipático como um pepino. O sentimento é recíproco e muito intenso, mas apenas Rogério finge ser Carlos em ligações com os clientes. Jonas fica de pé e gira, na esperança de tornar-se um portal para outro lugar que não aquele; ficaria satisfeito caso pudesse simplesmente aparecer em seu trabalho.

Caso fosse onisciente, talvez Rogério teria pensado antes de prosseguir com seu caos. Resolve acender e apagar a luz do banheiro, muitas vezes. Em um frame, Jonas está em pé, olhando para cima. No outro, está caído no chão e a água, aos poucos, fica vermelha. Um assassinato acaba de ocorrer. A arma do crime: uma lâmpada piscando várias vezes, eliciando uma epilepsia, depois a queda e fratura na cabeça.

Rogério começa a tremer. O suor jorra de seus poros e jura que seu coração parou por uns dois segundos. Sente o maior ódio possível de seu trabalho, pois o instigara a chegar ao presente momento. Se ele fosse o programador chefe, nada disso teria acontecido. Seria feliz. A culpa é da empresa por desperdiçarem sua potência toda em um trabalho desqualificado. Lembra-se de sua ex-namorada, que o trocou por outro; outra culpada. Seus pais não deram atenção suficiente. Além disso tudo, há a dívida no banco. Tantos culpados por aqueles sentimentos horríveis que ele desconta nos seus clientes. Escolhia um cliente por dia para dá-lo um dia horrível, controlando o sistema central da Administrational Artificial Inteligence; modificando pequenos elementos do piloto automático do sistema. Quebrando a rotina das pessoas aos poucos e de maneira sutil. A maioria dos clientes simplesmente saía de casa muito irritados, reclamavam com a empresa, Carlos tomava xingo e acabava assim.

Rogério apenas espera que não encontrem Jonas durante um bom tempo.

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Publicado por Vinicius Souza Vitalli

Psicólogo formado pela Universidade Estadual de Londrina. Metendo o louco pelo mundo para ver no que dá. Atualmente vivo na Itália. Me pauto na filosofia, psicologia e economia para refletir sobre o mundo e auxiliar a mim mesmo a ser uma pessoa melhor e a atingir meus objetivos. De quebra, talvez eu ajude mais alguém.

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