Homo artificialis

Outro dia assisti o filme “A Casa”, no Netflix. Não darei spoilers, apenas comentarei sobre o padrão do personagem de agir em prol de desenvolver uma imagem ilusória sobre si e não baseado em uma moralidade que preza pela verdade. A própria fotografia do longa diversas vezes mostra o reflexo dos personagens em espelhos, com o objetivo de dar ênfase na temática da imagem que fazemos de nós mesmos para os outros. Pois, apesar de tudo, sabemos muito bem quais imoralidades cometemos deliberadamente.

O protagonista é um publicitário à procura de um emprego. Seu trabalho, por si só, já promoveu o desenvolvimento de um repertório de “como mostrar as coisas de uma maneira que as pessoas desejem o elemento x, y, z”. Ele usa tal conhecimento para enganar diversas pessoas, com certa precisão. O aumento do uso das redes sociais possibilitou que muitas pessoas adquirissem esse mesmo conhecimento da publicidade, por causa da seleção dos comportamentos nesse ambiente digital por meio de reforços positivos como o “Like”, o “coração” etc. Perfis “good vibes”, mas que na realidade são sombras com duas caras; outras que cometem suicídio, mas só mostraram para o mundo as coisas boas, não sabendo lidar com as ruins e impedindo a possibilidade de ajuda. Há possibilidades no sofrimento. Victor Frankl, criador da logoterapia e autor de “O Homem em Busca de um Sentido”, sugere que uma das maneiras para a vida ter significado vem de como agimos perante um sofrimento inevitável. Claro que nem todo sofrimento é inevitável e muitos dos que são evitáveis devem ser evitados. Por mais que seja cansativo acordar cedo e muitas vezes ir para um trabalho que você não gosta, a própria sobrevivência ou a de sua família vale mais que tal sofrimento. Mas, se você pisa na mesma peça de Lego que está no chão e nunca fez nada sobre isso, algo está errado. O ponto aqui é que, no fundo, é possível ter esperança e não entrar em crise existencial mesmo nos piores momentos; mas para tudo isso a verdade, consequentemente uma existência legítima, são necessárias. Sendo assim, a ação em prol de uma imagem falsa de si, reforçada pelo uso recreativo de maneira inadequada de toda essa potência das mídias sociais, torna-se mais uma ferramenta de fuga da realidade; vivendo mentiras e cometendo erros.

O episódio “Nosedive” da série “Black Mirror” também lida com o tema da imagem e das redes sociais, mas com uma protagonista sem o repertório necessário para de adaptar com precisão. A personagem, na tentativa de satisfazer os outros e aumentar seus pontos no ranking social, sacrifica a si mesma nessa busca. Às vezes a tentativa de manter uma imagem positiva leva a caminhos imorais, corrói a alma e normaliza a imoralidade. Provavelmente o personagem de “A Casa” não teria tantos problemas nesse contexto.

O ponto que eu gostaria de chegar é o de como a obsessão pela nossa imagem ilusória no contexto social irá apenas corromper quaisquer valores que permitem uma organização social verdadeira; ao agir baseado em mentiras, as consequências são os erros. Até mesmo evitar o sofrimento do outro pode ser usado como desculpa para elaborar uma estória sobre si, a fim de manter a imagem social positiva. A fofoca se espalha; caso as ações realmente feitas pela pessoa sejam disseminadas no contexto social, sua imagem se degenera. Uma área da vida muito afetada por esse ambiente é a dos relacionamentos. Reflito aqui que a intenção da imagem social sempre positiva é evitar conflitos, apesar de causá-los com uma boa frequência com todos aqueles que buscam o contato com o objeto e não seu reflexo. Como diz o ditado: “a mentira tem perna curta” e acrescentaria que o “espelho, um dia, quebra”.

Spinoza, filósofo com sangue português que viveu boa parte de sua vida na Holanda, reflete que a ênfase no status social como fim em si desvirtua a pessoa de si mesma e, consequentemente, do sentimento de realização e conquista sobre as consequências de suas ações. A culpa, a angústia e o mal estar podem se fazer presentes o tempo todo ou apenas desconcertar a pessoa em um momento de fraqueza, seja esta física e/ou existencial. Quando tal prestígio social é resultado de ações virtuosas por parte dos indivíduos, não é algo que será problema; apenas se a manutenção do prestígio seja colocada como o novo objetivo, tornando-se um fim em si. Esta última não é a situação de uma grande parcela dos usuários de rede sociais, principalmente aquelas que têm ênfase em suas imagens aparentes.

A tentação de ir pro caminho das ilusões, sendo isto o que chamo de uso das redes sociais como “fim em si”, é grande. Principalmente para as pessoas esculturalmente belas. O social acaba orbitando tais pessoas; um dos nossos instintos mais potentes é o de fazer sexo. Elas atraem multidões para seus perfis, chovem “likes” em suas fotos com roupas de praia – as outras fotos também têm vários “likes”, mas não é comparável – e em situações adornadas pelo luxo. Desta maneira, a utilização das redes sociais em favor do status social é reforçado. Engraçado é que, ao mesmo tempo, criticar essa mesma maneira de mostrar-se pro mundo como se sua vida fosse uma perfeição diária também virou moda. As mesmas pessoas que fazem toda a produção de seus perfis para mostrarem a própria vida como o ápice da felicidade são as mesmas que começaram a postar pequenos textos sobre o problema da futilidade e da busca constante pelos padrões mais demandados pela sociedade, da maneira mais superficial possível, mesmo por acidente. As pessoas que não pertencem a tais requerimentos e não conseguem atingi-los, exageram suas características destoantes e fazem as mesmas críticas. A crítica, muitas vezes válida, se dilui no mar da banalização. O amor constantemente sofre de mal semelhante.

Aproveito desta moda para passar um pouco de filosofia; tal como Stefan Molyneux escreve em seu artigo “Worlds Apart”, este conhecimento serve para a identificação e hierarquização dos nossos valores. A fim de preencher o vazio existencial, as pessoas podem substituir a falta de sentido na própria vida (sendo este um dos instintos humanos) pela busca do poder, muitas vezes representada pela busca pelo dinheiro, e/ou pela busca da satisfação dos prazeres sexuais, segundo Victor Frankl. Spinoza se refere à luxúria, à avareza e à procura de status social como elementos que corrompem a potência individual para a felicidade. Podemos entender o status social como uma das formas da busca pelo poder, devido a potência de influenciar outras pessoas; com a internet, em todo lugar do mundo. Assim, podemos concluir que utilizar as redes sociais a fim, e como fim em si, de promover a própria imagem, no sentido ilusório, é um curativo bem ineficaz para lidar com a origem de tanta artificialidade: a desorientação para encontrar um significado para a própria vida.

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Publicado por Vinicius Souza Vitalli

Psicólogo formado pela Universidade Estadual de Londrina. Metendo o louco pelo mundo para ver no que dá. Atualmente vivo na Itália. Me pauto na filosofia, psicologia e economia para refletir sobre o mundo e auxiliar a mim mesmo a ser uma pessoa melhor e a atingir meus objetivos. De quebra, talvez eu ajude mais alguém.

6 comentários em “Homo artificialis

  1. Caramba que texto. Confesso que estou um pouco desconcertado. Com tantas informações, eu tive um apanhado grande de observações. Eu entendi que para suportar tal dor é preciso de um objetivo. Mas e quando esse objetivo não é muito aparente? Pior, ele serve para reforçar uma autossabotagem. Já que não se pode ser reconhecedor de valer a pena pois se pauta num padrão que muita das vezes destoa. Esse estado de corromper pode mesmo chegar em um abismo muito grave? *Pois, apesar de tudo, sabemos muito bem quais imoralidades cometemos deliberadamente* com isso eu posso entender que se cria uma certa fetichização degradante para dar sentido ao ‘não valer a pena’ ?

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    1. Muito obrigado pelo comentário! Gostei das suas questões.
      1- Sobre o objetivo não ser aparente: eu indico que o primeiro passo seja identificar a hierarquia de valores e desejos da pessoa, além de identificar se há conflito entre esses dois campos; nesse ponto, a pessoa já começa a tomar consciência e ser responsável pelos próximos passos.
      2- A autossabotagem, pois o critério que colocado é “destoante” (entendi como distante, me corrija se eu estiver errado): gosto muito da análise do comportamento e do Jordan Peterson nesse sentido; o critério que você tem que usar é se você está melhor que ontem e não comparar-se à outra pessoa. Realmente, podemos colocar objetivos inatingíveis (muitas vezes inatingíveis pois não sabemos o caminho. Traçando tal caminho, tornam-se atingíveis) e elas devem ser conteúdo para a análise das ações; tal etapa vem depois da análise dos valores e desejos. Esmiuçando os objetivos, metas e ações necessárias para atingir tais metas e objetivos, é necessário determinar se os critérios são atingíveis, seja pela questão monetária, do tempo ou até mesmo física. Um amigo meu tinha o sonho de ser piloto da aeronáutica, mas devido a um problema na coluna, resolveu mudar seu objetivo. É um caminho difícil e cansativo, mas necessário para não ficar perdido e se autossabotar.
      3- Se o estado de corrompimento é grave: dependo do que você considera grave. Eu entendo que o alto índice de sintomas depressivos e de ansiedade que ocorrem cada vez com mais frequência são graves tanto no plano individual quanto no plano social. Uma população desorientada faz uma sociedade desorientada e isso leva ao conflito. Portanto, um dos meus objetivos com os textos é promover reflexões a fim de diminuir os conflitos intra e interpessoais.
      4- Sobre a fetichização degradante para dar sentido ao ‘não valer a pena’: entendo dessa maneira, sim. O vício substitui a virtude na hierarquia de valores e, como nosso sistema de recompensa é ativado, cria-se uma áura de virtude sobre o vício.
      Espero ter esclarecido alguma ideias e te convido a ler meus outros textos no Blog, assim como os de meus amigos.
      Se cuide!

      Curtido por 4 pessoas

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